Eu ainda vou voltar a este livro, mas separo neste texto algumas primeiras impressões. Polarização política é um tema que corre o risco de ser clichê. O mais fácil seria traçar uma solução catastrófica para o problema ou simplesmente resumir a situação do Brasil de uma maneira simplista de que Lula impediu a reeleição do fascista Jair Bolsonaro.
Sócio-fundador da Quaest, Felipe Nunes realiza algumas das pesquisas eleitorais mais detalhadas e fez bons levantamentos sobre a articulação digital mais recente. Colunista da Veja e do Poder360, Thomas Traumann teve experiência como porta-voz do governo Dilma e dá a liga no livro a "Biografia do Abismo". A obra se insere nas análises mais críticas da polarização.
No entanto, ela oferece um possível diagnóstico realista da articulação que conduziu Luiz Inácio Lula da Silva ao poder com 60 milhões de votos e pela terceira vez, além de destrinchar, na população, o real desastre que foram os quatro anos de Bolsonaro e do desgoverno pandêmico.
E a análise não se restringe aos candidatos, aos parlamentares e chega aos influenciadores digitais, os comunicadores e, sobretudo, seus impactos na população. O livro tem 240 páginas. Na 192, os autores pontuam o seguinte.
A intransigência se retroalimenta e se sedimenta fora do período eleitoral, mas as responsabilidades dos agentes públicos são distintas das de outros atores. Ao longo de 2022 e 2023, o STF decretou vários casos de censura nas redes sociais a influenciadores de direita e de extrema direita, numa ação que colocou no mesmo pacote os envolvidos na tentativa de golpe em 8 de janeiro empresários bolsonaristas que discutiam política em um grupo de WhatsApp e humoristas como o youtuber Bruno Monteiro Aiub, conhecido como Monark. Em vez de gerar um grau mínimo de responsabilidade nas redes sociais, a falta de critério das decisões judiciais apenas acentuou o discurso de extrema direita de que a Justiça era parcial, sempre decidindo contra os bolsonaristas. Em junho de 2023, ao discursar num evento estudantil [da UNE], o ministro Roberto Barroso [hoje presidente da Corte], que viria a tomar posse como presidente do STF apenas dois meses depois, alimentou ainda mais as acusações de parcialidade ao dizer que fazia parte dos que haviam "derrotado o bolsonarismo".
É possível não concordar exatamente que essas decisões do Supremo foram de "censura" da extrema direita. Acredito que o ministro Moraes e a Corte impediram um golpe de Estado. No entanto, os autores mediam e discutem a reação dos próprios bolsonaristas e a necessidade de um novo pacto, que ainda não dá sinais de desenvolvimento.
Se o presidente, ministros do STF, governadores, senadores, deputados e jornalistas têm uma responsabilidade políticade ao menos atenuar os efeitos da polarização extrema, a responsabilidade individual do cidadão é aprender a conviver com as diferenças.
Na página 189, um pouco antes, Traumann e Nunes sugerem soluções.
Parece contraditório, mas no primeiro passo para sair da calcificação a sociedade precisa concordar sobre limites que, se cruzados, geram repulsas em todos os lados. É como uma Convenção de Genebra, o protocolo que tenta dar regras mínimas aos conflitos armados. O embate entre ideias contrárias deve ser normalizado, mas os lados precisam aceitar que existem regras civilizatórias que não podem ser ultrapassadas. Os atentados a Brasília de 8 de janeiro cruzaram essa linha.
Os autores, no entanto, enxergam limites no atual governo. Página 205, perto do final.
Os primeiros meses de 2023 poderiam dar a impressão de que nosso diagnóstico é exagerado. O estilo de Lula, historicamente menos belicoso que o de Bolsonaro, reduziu o estresse das relações da sociedade com o governo. Além disso, a condenação do ex-presidente, impedindo que ele participe das eleições até 2030, descarta a repetição de uma revance Lula x Bolsonaro nos próximos pleitos. Por fim, a incorporação na base congressual do governo Lula de partidos que estiveram com Bolsonaro poderia em tese significar a volta da "política como ela é", dos anos 1990 e 2000.
Acreditamos firmemente que essa impressão de volta da normalidade é um autoengano. Passados dez meses desde as eleições, dois de cada três brasileiros consideravam o país mais dividido do que unido. Em junho de 2023, o Brasil ainda aparecia com os mesmos patamares de opinião sobre polarização sentidos em outubro de 2022, no auge da disputa eleitoral. É preciso ser de outro planeta para não se assustar com esse sentimento.
O livro aponta, aparentemente, para um estrago mais profundo provocado pelo bolsonarismo e pela extrema direita no Brasil. Volto a ele em algum momento. Entrevistamos Thomas Traumann há 10 meses. Vale ver a conversa e os cortes.
Comentários: