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Quinta-feira, 27 de Novembro de 2025

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O Caso Léo Lins e o Espelho da Sociedade: que tipo de público consome esse humor? Por Fabricio Rinaldi

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O Caso Léo Lins e o Espelho da Sociedade: que tipo de público consome esse humor? Por Fabricio Rinaldi
Foto: Reprodução
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Em meio à repercussão do caso Léo Lins, humorista condenado a oito anos e três meses de prisão por piadas que ultrapassaram os limites da legalidade, configurando crimes de discriminação e ódio, há uma dimensão do debate que permanece pouco explorada: a sociedade que consome esse tipo de conteúdo.

Mais do que um indivíduo isolado, Léo Lins representa um fenômeno que só existe porque encontra demanda. Piadas que atacam pessoas com deficiência, fazem graça com o sofrimento de quem vive com câncer, instrumentalizam a tragédia da Boate Kiss, sexualizam crianças, propagam racismo e outras formas de opressão não seriam sequer verbalizadas num ambiente social saudável. Em uma sociedade ética, o artista que escolhesse esse tipo de "material" simplesmente não teria público: não lotaria teatros, não seria aplaudido, não teria carreira. Na melhor das hipóteses, seria ignorado; na pior, rechaçado publicamente.

Por isso, a pergunta fundamental é: que tipo de sociedade estamos construindo e alimentando, onde esse tipo de "humor" encontra não apenas espaço, mas plateias entusiasmadas que riem, aplaudem e compartilham? A indignação não deve se limitar ao comportamento do humorista, mas se estender à estrutura social que valida esse tipo de espetáculo.

Em uma sociedade saudável, as pessoas sequer se deslocariam para assistir a um show desse perfil. Se o fizessem, seria para expressar repúdio. A ausência de público seria o verdadeiro mecanismo de neutralização de um discurso que se alimenta da violência simbólica, que constrói sua identidade a partir do ataque deliberado aos grupos historicamente vulnerabilizados. O silêncio da bilheteria é o antídoto mais eficaz para esse tipo de prática. O mercado, que também regula a cultura, excluiria esse artista de forma espontânea.

Mas não é isso que acontece. Ao contrário: Léo Lins segue atraindo espectadores, vendendo ingressos e sendo ovacionado. Não é ele, sozinho, quem legitima esse tipo de discurso, mas toda uma engrenagem social, econômica e cultural que consome, reproduz e naturaliza esse tipo de violência travestida de humor.

Aqui, cabe uma reflexão fundamental, muitas vezes negligenciada: quando um artista, seja humorista, ator ou músico, sobe ao palco, ele não sobe “sozinho”. Ele sobe acompanhado de uma figura construída, uma persona, uma máscara. No caso do stand-up comedy, essa distinção muitas vezes se torna confusa, porque há uma percepção generalizada de que o humorista, ali no palco, está sendo “ele mesmo”, falando de maneira direta, sem qualquer mediação. Mas isso é um erro de compreensão sobre a própria natureza da arte.

Mesmo no stand-up, existe uma estrutura composta minimamente por três elementos: o ser humano que é o artista; a persona, ou seja, o personagem que ele escolheu construir para aquele espetáculo; e o público. É essa persona que fala, que age, que performa. O público, nem sempre familiarizado com as linguagens artísticas, tende a confundir essa figura de palco com o próprio indivíduo, como se não houvesse separação entre o criador e a criatura.

Isso se torna ainda mais complexo quando a persona é desenhada como uma figura escrota, que faz piadas criminosas, que ataca minorias e banaliza o sofrimento humano. O humorista, como profissional, pode até ter uma compreensão interessante sobre ética, política e sociedade mas, artisticamente, ele opta por construir uma persona que se expressa a partir da transgressão e da violência.

É legítimo questionar a decisão de criar uma persona assim? Sem dúvida. Trata-se, talvez, de uma escolha estética, ética e política condenável. Mas não se pode prender alguém por ter criado uma persona ruim, mesmo que criminosa. Podem-se e devem-se impor sanções, censuras sociais, boicotes, multas, limites éticos; pode-se mover processos civis ou exigir reparações. Mas transformar a criação de uma persona em um motivo para a prisão de um artista é um caminho arriscado e que coloca a própria liberdade artística e de expressão em xeque.

A confusão entre o humorista e sua persona leva, muitas vezes, ao desejo punitivo extremo, como se fosse possível eliminar, com uma sentença judicial, não apenas o espetáculo, mas também o artista e o fenômeno social que ele representa. Mas a prática do humor, como qualquer forma de arte, opera nesse espaço de ficção e de representação, ainda que, no caso de Léo Lins, essa ficção seja usada para perpetuar violências reais.

É aí que reside o maior desafio: não apenas criminalizar o indivíduo, mas transformar a cultura que o sustenta. Prendê-lo, além de juridicamente questionável pela desproporcionalidade da pena, pode acabar alimentando outro fenômeno: o de transformá-lo em mártir, alguém que se apresenta como vítima de censura, e não como autor de crimes.

Ao se transformar em símbolo da “liberdade de expressão”, mesmo que essa expressão se dê pela violência e pelo preconceito, ele passa a ser idolatrado como herói por parcelas da sociedade que compartilham desses mesmos valores ou que rejeitam o controle jurídico sobre conteúdos artísticos, ainda que criminosos.

Mais preocupante ainda é pensar que a punição pode não funcionar como freio, mas como estímulo para que outros humoristas ou influenciadores testem os limites da legalidade e da sociedade, em uma escalada de provocações que fragiliza ainda mais o debate público. Se a prisão for o único caminho, corremos o risco de inaugurar uma nova fase: a dos humoristas que desafiam abertamente a justiça, se vitimizam diante de qualquer sanção e angariam novos públicos justamente por se posicionarem como perseguidos.

Além disso, esse debate nos obriga a refletir sobre os limites da liberdade de expressão e os riscos das respostas punitivas excessivas. Quem garante que amanhã, em um contexto político diferente (talvez autoritário), essa mesma lógica punitiva não seja usada contra artistas progressistas ou de esquerda? Onde traçaremos a linha?

O caso recente do outdoor “Bolsonaro não vale um pequi roído”, que gerou tentativas de censura, é um exemplo de como a liberdade de expressão pode ser deturpada conforme os interesses políticos do momento. Não se trata, claro, de equiparar o conteúdo criminoso de Léo Lins a manifestações legítimas de crítica política. Mas serve como alerta: quando o Estado passa a definir de forma ampla o que pode ou não ser dito no campo artístico, todos correm risco.

Essa reflexão também expõe um paradoxo: muitos setores da esquerda defenderam o direito do MC Poze do Rodo de cantar músicas com apologia ao crime, mas agora comemoram a punição de Léo Lins. Ao mesmo tempo, setores da extrema direita se levantam em defesa do humorista, mas não hesitaram em atacar o MC Poze. O debate perde profundidade e coerência quando guiado exclusivamente por afinidades ideológicas, e não por princípios democráticos sólidos.

Por isso, a saída mais sustentável passa por fortalecer processos de conscientização e educação, e não apenas recorrer à punição exemplar. A cultura que consome, compartilha e ri desse tipo de “humor” precisa ser confrontada com argumentos, informação, crítica e resistência social. É nesse campo, o da formação ética, estética e política, que se pode, de fato, transformar o ambiente que permite que espetáculos violentos prosperem.

O caso Léo Lins não é apenas sobre um humorista que cruzou todas as linhas da dignidade humana. É sobre nós, enquanto sociedade: sobre o que aceitamos, sobre o que consumimos, sobre o que silenciamos, e sobre o que rimos.

Fabrício Rinaldi

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