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Quarta-feira, 12 de Novembro de 2025

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O mel e o fel: o que podemos aprender com as abelhas nordestinas. Por Sara Goes

Como uma cadeia produtiva baseada na agricultura familiar desafiou o agro hegemônico e virou alvo colateral do império

O mel e o fel: o que podemos aprender com as abelhas nordestinas. Por Sara Goes
Foto: Reprodução/IA
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Por Sara Goes no Prefirocuscuz.

Elas vieram do fundo da caatinga, convocadas por um zumbido arengueiro que atravessa séculos de seca, luta e insubmissão. Não eram poucas, avalie tímidas. Vieram em bando, organizadas, certeiras, implacáveis. E escolheram o exato momento em que Jair Bolsonaro subia num palanque em Macaíba, no Rio Grande do Norte, para discursar. Ali, no meio da Rota 22, caravana da extrema direita que tenta aliciar o Nordeste com promessas recicladas e ressentimento, as abelhas apareceram heroicas e proféticas, como símbolo e alerta.

O ataque interrompeu o discurso e viralizou. As abelhas nordestinas são parte viva da engrenagem econômica que floresceu no semiárido graças a políticas públicas de base, criadas e ampliadas nos governos do PT. São elas que polinizam as flores das cactáceas, que garantem a produtividade da caatinga, que sustentam a cadeia do mel, hoje uma das mais importantes da agricultura familiar nordestina.

Nos últimos anos, o Piauí se transformou em potência mundial do mel orgânico. A região de Picos, com mais de 12 mil apicultores, viu sua produção triplicar. O estado se tornou o segundo maior produtor do país, com quase 9 mil toneladas em 2023, e lidera as exportações brasileiras, com mais de 80% do mel vendido ao exterior indo para os Estados Unidos. Esse salto só foi possível graças à articulação entre cooperativas como a Casa Apis e o Grupo Sama, apoio técnico de universidades e investimentos públicos na agricultura familiar, em infraestrutura de beneficiamento e certificação internacional. Um caso exemplar de desenvolvimento sustentável enraizado em saberes locais.

A cadeia produtiva do mel não apenas floresceu fora dos trilhos tradicionais do agronegócio, como também colocou em prática uma forma de produção que não se submete à lógica do capital. Assim como Marx descreveu a acumulação primitiva como violência fundadora do sistema, a ofensiva tarifária dos Estados Unidos contra o mel nordestino pode ser lida como tentativa contemporânea de desorganizar formas autônomas de trabalho e cooperação. A tarifa de 50%, imposta sobre mais de 95 toneladas de mel piauiense retidas no Porto do Pecém, no Ceará, é um ataque cuidadosamente direcionado contra um projeto viável, soberano e popular. O alvo não é apenas o produto, mas uma engrenagem que escapa à extração do mais-valia e funciona como escândalo funcional para o capital, que não tolera nada que opere fora de sua lógica.

Na tradição marxiana, o capital precisa dissolver as formas comunais para expandir sua dominação. Marx mostrou como a terra comunal foi cercada e expropriada para dar lugar à propriedade privada. O que se vê hoje é o mesmo princípio reencenado com novos métodos. A tarifa é o arame farpado da vez, erguido sobre a caatinga para conter uma economia que se sustenta na coletividade, na reprodução dos ecossistemas e na autonomia dos trabalhadores. Nesse sentido, as abelhas não são mercadoria, são força viva. Produzem valor social, não mais-valia. Polinizam territórios, não mercados. E por isso se tornaram alvos.

O cerco ao Nordeste não começou no porto. Antes do tarifaço, vieram as blitzes, as ameaças e as tentativas de apagar o voto pelo cansaço. A presidência foi usada como aparelho de perseguição. A PRF, a mando de Bolsonaro, tentou barrar o eleitorado nas estradas, como reconheceu o próprio procurador-geral Paulo Gonet. Primeiro, tentaram impedir que o povo chegasse à urna. Depois, que sua escolha se realizasse. Agora, querem que pague por ela.

A retaliação tarifária é só mais uma camada na longa história de assédio político à região. A extrema direita ainda trata o Nordeste como terra de reconquista, onde motociatas, fake news e chantagens se alternam como instrumentos de dominação. A Rota 22, encenada pelo PL, tenta reocupar simbolicamente cidades do interior nordestino, quando as abelhas deixam. Enquanto isso, os tentáculos partidários se espalham oferecendo verbas, cargos e influência digital para cooptar prefeitos, comunicadores e lideranças comunitárias. Um projeto autônomo e popular sempre incomoda quem depende do controle pelo alto.

Mas o Nordeste sabe se defender. Durante a pandemia, o Consórcio Nordeste mostrou que é possível enfrentar o negacionismo com ciência, planejamento e cooperação. Foi um marco da resistência federativa, reconhecido internacionalmente. Essa mesma lógica de resistência reaparece agora na defesa do mel.

O ataque tarifário não encontrou uma região ajoelhada, mas um sistema produtivo articulado, com voz, organização e capacidade de reação rápida. As abelhas voltam, não para ferroar a coisa, mas para lembrar que o Nordeste é coletivo, é político e não se submete. Elas carregam nas asas a memória da luta contra a seca, contra a fome, contra o colonialismo moderno que tenta se disfarçar de pragmatismo comercial. Colocam sobre o corpo do capital a poeira da caatinga e seu zumbido insistente. Reencenam a contradição central do capitalismo: sua necessidade de destruir tudo que não controla. E anunciam, com precisão orgânica, que essa terra produz resistência antes mesmo de produzir mercadoria.

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